Cynthia 10
Os dias de Outono seguiam com um frio excepcional para aquela época do ano, antecipando uma aura de introspecção e aconchego, com direito a noites à beira da lareira e taças de vinho para esquentar a alma.
Cynthia passava os dias tranquilamente. Acordava cedo e bem disposta, fazia seu café e ia para a varanda, respirar a brisa fresca daquelas frias manhãs ensolaradas, ainda surpresa com a paz de espírito e a leveza interior que sentia. As coisas simples e singelas haviam tomado uma importância enorme em sua vida e sentia imensa falta de cada uma delas. Se chovia ou estava frio demais para ficar na varanda pela manhã ou em seus artesanatos, se não tinha tempo para sua leitura matinal sagrada, regada a boas xícaras de café, ela se ressentia. Estava gostando de acordar, despertar, se preparando para o dia que teria pela frente. A calma agora era uma constante e bem quista companheira.
Numa semana chuvosa e gelada, daquelas que desencorajam a simples idéia de abrir a janela, Cynthia arrumou os CDs que estavam há anos jogados num canto, misturados. Separou aqueles que não queria mais, as capas quebradas foram substituídas e as antigas foram para o lixo. Divertiu-se ouvindo as músicas da sua adolescência, relembrando paixões dramáticas e lágrimas de amor não correspondido, ao som de trilhas sonoras soturnas e deprimentes. Deixou-se levar até os dias de verão nas férias, com dias inteiros na praia, entre amigas, paqueras e asas delta, com direito ao por do sol debaixo da pedra da Gávea. Bons tempos aqueles, pensou.
Guardadas as proporções, era daquele jeito que Cynthia vinha se sentindo. Com o frescor da juventude que tudo quer descobrir e viver, destemida e otimista, cheia de planos e sonhos. Sim, ela havia voltado a sonhar, a ter esperança!
Aos poucos Cynthia se dava conta de como estava desacostumada a ser feliz. O fato de se sentir ela mesma novamente era motivo de contentamento e a cada dia seu passado ficava mais distante, na mesma medida em que ela ia redescobrindo a alegria de viver. Cuidar de si agora era um prazer. Aproveitava suas manhãs e fazia exercícios todos os dias, o que lhe dava enorme disposição para as tarefas e afazeres, dos mais simples aos mais complexos. Realizava suas coisas com prazer. Estava mais paciente e tolerante com os outros. Dirigia com calma e prudência, fazendo os percursos mais agradáveis, aproveitando para desfrutar das belas paisagens de sua cidade. Sentava-se horas a fio ao computador, escrevendo sem parar sobre coisas diversas, dando vazão a sentimentos e idéias, sem se preocupar se farião sentido ou não. Estava começando a pensar em escrever seu próximo livro. Um projeto. Enquanto essa gestação se iniciava, Cynthia aproveitava para desenferrujar os dedos e as idéias, escrevendo pequenos contos e textos pessoais em seu blog.Estava esquentando os motores. Em breve alçaria vôo.
Estava extasiada com seu bem estar. Às vezes, sentava na varanda e ficava observando a natureza, simplesmente. O movimento das árvores, a direção do vento, as vozes das crianças em suas brincadeiras, os diversos piados e cantos dos pássaros. Parecia que era a primeira vez que ela via esse mundo. E era, de certa forma. Os anos que havia passado ao lado de Limali tinham sido duros e cruéis, transformando Cynthia numa mulher triste e cansada. E o pior é que ela não havia se dado conta do quanto. Ali sentada, sentindo o calor do sol aquecendo sua alma ela pode mensurar a quantos anos não fazia aquilo: simplesmente sentar na varanda tomando uma xícara de café quente e fresco, apreciando a natureza e observando o vai e vem dos beija-flores. Sua antiga tristeza a entristeceu. Suas memórias eram tão densas e desagradáveis que gostaria de despachá-las para algum sistema solar distante, mas isso não seria possível. Ao invés disso, resolveu respirar fundo, sentiu o frescor da manhã e fechou os olhos, como que para melhor registrar o momento, tatuando em sua memória aquela sensação de pureza. Estar ali bem, com saúde, feliz e em paz era o que importava. Seu estado de espírito era o prêmio pelas agruras que passara, sabia disso. Se todos os obstáculos que passou para chegar até ali foram testes, ela os havia vencido e transformado em pontes para o momento presente. Ali, de olhos cerrados, Cynthia rezou, grata por tudo que havia vivido e que a havia levado a ser a mulher que era. Valeu à pena!
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“Os mais puros diamantes nascem sob enorme pressão, no escuro ventre da Terra.”. K.
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